Nada como o sucesso de uma adaptação para fazer uma escritora pensar “e se eu escrevesse uma continuação para esta hi$tória?”. É daí que surgiu Os Testamentos, o mais novo livro de Margaret Atwood, em continuação ao aclamado O Conto da Aia (Handmaid’s Tale). Lançado na primeira terça de setembro no Brasil e mundo, o livro reúne relatos de 3 mulheres com ligações diferentes à república de Gilead – e promete apresentar ao leitor um pouco mais sobre a vida neste mundo distópico.
O livro começa em grande estilo: uma das narradoras escolhidas é ninguém menos que a Tia Lydia. A personagem está presente tanto no livro original quanto na série de TV e é difícil escolher em qual deles ela é mais odiada. Líder das Tias, o único grupo de mulheres em Gilead que podem ler e escrever, Tia Lydia tem um rastro de torturas, punições e doutrinação com as mulheres de Gilead. Mas Os Testamentos se propõe a fazer uma mea culpa dela – apresentando as razões que fizeram ela se aliar ao regime e aceitar a sua posição. A intenção é boa, se, ao tentar fazer isso, o livro não simplificasse tanto a personagem.
As crueldades de Tia Lydia não tem espaço nos relatos do livro – questão de ponto de vista ou tentativa de mea culpa?
Isso porque, em primeiro lugar, o relato de Tia Lydia não cita nenhuma das violências promovidas por ela. Ao invés disso, outras Tias são apontadas como as verdadeiras vilãs, e Lydia era, na verdade, uma estrategista, manipulando o regime para se manter em uma posição de poder. Mais tarde, vemos também que essa posição de poder foi mantida supostamente para poder lutar contra Gilead desde dentro. Mas a narrativa não emociona e nem convence o leitor. Como acreditar que a mesma personagem que aterrorizava as Aias era, no fundo, uma aliada? E que tudo que fez era necessário para no futuro atingir o regime? Mesmo os (poucos) relatos de sofrimento dor parte dela criam mais uma satisfação vingativa (toma, sua filha da p-!) do que emoção.
As duas outras narradoras de Os Testamentos também não fazem muito pelo leitor. Conhecemos Agnes e Daisy- a primeira nascida e criada em Gilead, sendo educada para se tornar uma Esposa; e a segunda uma menina comum criada no Canadá, até descobrirmos que ela foi uma bebê salva de Gilead por sua mãe (uma aia).
A história de Agnes é a parte alta do livro, definitivamente. Com ela conhecemos um pouco mais sobre as Esposas e as expectativas criadas para as jovens meninas do regime, que já podem (devem!) se casar com apenas 13 anos. A solidão de Agnes após perder sua mãe , o sofrimento e o estigma de descobrir que sua mãe biológica na verdade era uma Aia e sua relação na escola revelam muito sobre o que era Gilead para quem nasceu lá. A relação dela com duas amigas são as mais interessantes do livro, mostrando um pouco mais sobre a ideologia do país, mas com tom de humor típico de adolescentes. Quando a história dela começa a ficar mais tensa, a transição acontece de forma envolvente.
O livro nos conta pouco ou quase nada do contexto político e histórico que permitiu a criação de Gilead
Já Daisy poderia ter a história mais instigantes de todas – salva de Gilead ainda bebê, ela fica órfã das pessoas que a criaram e tem como única opção participar da Mayday, organização considerada terrorista que luta contra o regime de Gilead. Mas parece que tudo na história acontece com a personagem, e não por causa de atitudes dela. Além de ter pouco carisma, Daisy acaba sendo arrastada de um lugar para o outro por outras pessoas, fazendo coisas sem saber porquê, e chegando… literalmente ao mesmo lugar de onde saiu. A personagem é quase um objeto de cena.
Enquanto as três narradoras não têm seus destinos cruzados, o livro é bastante chato. As histórias de Agnes são os únicos momentos onde realmente se acrescentam coisas novas ao universo criado por Atwood. O que resta ao leitor é aguardar o momento em que, esperamos, as três mulheres irão se unir por uma razão muito importante. Isso acontece, mais uma vez arquitetado por Tia Lydia, mas não pensem que é aí que o livro pega embalo – Os Testamentos simplesmente não tem clímax. Há um suspense em uma das últimas cenas, mas é curto demais para compensar por todo o final. O resultado é que não temos nem uma leitura emocionante e instigante como foi O Conto da Aia e nem conseguimos ter muitas das nossas perguntas sobre Gilead respondidas.
Os Testamentos é um caso curioso onde a escritora não consegue fazer jus à complexidade da própria obra que criou
Talvez a genialidade de Atwood no primeiro livro tenha sido justamente nos deixar tantos buracos – as respostas às perguntas de como Gilead pode ter surgido, como as mulheres se submetem a algo assim, e como uma sociedade pode conviver com a completa opressão de parte dela não serão tiradas da obra, e sim de experiências e impressões do próprio leitor (ou, na maior parte das vezes, da interpretação da nossa própria história social). Em Os Testamentos, com suas 400 longas páginas, tenta-se responder algumas dessas questões, mas de forma extremamente rasa. É como se a discussão que a obra gerou valesse mais do que as respostas que se tenta dar. Os Testamentos é um daqueles casos curiosos onde a escritora parece não conseguir fazer jus à complexidade da própria obra que criou.
p.s.: Eu, morta e enterrada depois de ler este livro… crianças, fiquem só em O Conto do Aia que é melhor 😉