Quem você era 10 anos atrás? O tempo cruelmente desfia nossa personalidade com cada golpe da vida, o que nos impele a mudanças inevitáveis. Nos tornamos mais lúcidos, perdemos a ingenuidade púbere, desfazemos laços que juramos num contrato de mindinhos que seriam eternos. A vida passa e tudo leva e, sem nos darmos conta, a coisa que menos mudou foi a imagem que nos encara no espelho, porque de resto, nossas crenças, anseios, postura e tudo que tange nossa experiência vivencial, fatalmente foi tocado pelo metamorfoseante pincel do tempo.
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É nessa incontestável verdade que Liane Moriarty nos submerge, trazendo para nós uma obra de narrativa leve, porém inquietante, que magistralmente revolve as fímbrias de nosso ser pela angústia de estar na pele de Alice. O livro , lançado pela editora Intrínseca em junho deste ano, traz uma história em que somos apresentados a Alice Love, uma mulher que sofre um acidente durante a aula de step na academia e perde as lembranças de 10 anos de sua vida. Próxima de completar 40 anos, ela acredita estar ainda com 29, recém-casada com o amor de sua vida, Nick, grávida do primeiro filho e com uma acolhedora família que inclui uma irmã extremamente próxima dela, com quem Alice pode contar diante de qualquer contratempo da vida. Mas qual não é a sua surpresa ao descobrir que nada disso é mais verdade. Como num pesadelo ininterrupto, ela descobre que está se divorciando, sua irmã mantém uma relação de fria cordialidade com ela e, para seu assombro, é mãe de 3 crianças.
“Teria passado de uvinha para pêssego, para uma bola de tênis, uma de basquete, até ser… um bebê. Alice sentiu uma vontade inapropriada de soltar uma gargalhada. Seu bebê tinha nove anos de idade”
Nas primeiras páginas mergulhamos nas lembranças entrecortadas e amorfas de Alice, em lapsos de passado entranhados no presente, enquanto a personagem luta por compreender qual a nova ordem de sua vida. Aos poucos percebemos junto com ela, que mais assustador do que a mudança de suas relações com as pessoas que a cercavam, Alice tornou-se uma pessoa totalmente irreconhecível, alguém frívola, de uma eficiência mecânica contrastante com sua personalidade antes desajeitada, de respostas ríspidas e olhar cortante, com uma fixação perfeccionista sobre tudo, inclusive na criação de seus filhos.
Moriarty ficou conhecida por ser autora do best-seller Pequenas Grandes Mentiras (no original, Big Little Lies), que foi adaptado pela HBO em uma série aclamada pela crítica, indicada a 16 categorias do Emmy, vencendo 8, incluindo de melhor série limitada. Não é surpresa que a autora possui uma excelente narrativa, criando personagens extremamente reais e envolvendo-nos nas vicissitudes que se enovelam na trama.
Neste livro, O que Alice esqueceu, sentimos todo o peso da estranheza de não pertencer à própria vida e ansiamos, junto com a personagem, pela chegada de seu marido Nick, crendo de forma desesperadoramente simplória que ele vai resolver todo aquele grande mal entendido. É difícil pôr em palavras a mescla de sensações que a história causa, perpassando euforia e angústia a uma distância de poucos parágrafos. Um livro maravilhoso que contempla questionamentos profundos sobre o que nos faz ser quem somos, realizando isso de forma divertida e emocionante, com todo o magnetismo que Moriarty sempre consegue conferir à suas páginas.
A obra está sendo adaptada em um filme roteirizado por Katherine Fugate (criadora da série Army Wives), tendo Jennifer Aniston no papel da protagonista, Alice. Ainda não tem data de estreia.