ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS DE CORINGA (2019). Se você ainda não viu o filme, assista e aí volte para ler o texto.
Respondendo logo a pergunta do título: não. Mas não adianta só dizer isso sem argumentar, né? De qualquer forma, só para deixar bastante claro: o Coringa do Joaquin Phoenix não é incel.
Então, para começar, vamos definir o termo incel. Incel vem da junção das palavras involuntary celibate, ou seja, celibato involuntário – em bom português, alguém que não transa por razões que independem de si. Ser incel é quando não transar – e ter raiva de mulheres por isso – vira a base da personalidade de alguém.
É parte básica da mitologia do grupo que o incel é incel por condições que independem deles, como genética e estrutura óssea – para os incels, existe o chad e o incel, sendo o chad um homem de certo biotipo e, especialmente, de certa estrutura craniana. Outros pontos importantes que diferenciam incels e chads também são altura, raça, e até circunferência do pulso.
Também é essencial para o pensamento incel acreditar que mulheres destruíram uma suposta distribuição igualitária de beleza – que aqui não é mais subjetiva e sim quantitativa – entre os seres humanos. Para eles, numa escala de beleza de 0 a 10, existe a mesma quantidade de mulheres 7 e homens 7. Mas as mulheres – sempre elas – querem casar com alguém mais bonito que elas, e só sentem atração pelos homens de nota mais alta, fadando todos os outros a, no máximo, receberem atenção sexual em um casamento infeliz, em que o único objetivo das mulheres é tirar dinheiro deles – o destino dos normies.
Mas nem todo incel é igual. No vídeo essay “Incels”, Natalie Wynn, do canal Contrapoints, separa incels em dois tipos: red pill e black pill.
Os incels red pill acreditam que podem parar de ser incels – aí entram, por exemplo, os pickup artists. Eles só precisam agir como “alphas”, se baseando na suposta hierarquia entre lobos (que o próprio autor desmentiu depois), ou seja, agindo com desprezo com mulheres. Neste nível, já existe um ódio necessário pelo feminismo, pois tecnicamente foi ele que deixou mulheres assim.
No nível black pill, você não acredita que pode fazer qualquer coisa para parar de ser incel, já que isso é definido de forma exclusivamente genética. Portanto, devido ao formato do seu maxilar e testa, você nunca vai conseguir transar ou ter um bom relacionamento, e vai ser infeliz para sempre.
Este é o nível que costuma formar atiradores em massa (que só conseguem realizar os massacres quando o acesso à armas é flexibilizado), pois se você nunca será feliz, sua única opção é deitar e apodrecer. Mas, com raiva, o incel também nutre um desejo de vingança.
Antes de finalizar esse segmento do texto – já está grande o suficiente – é importante destacar que, por mais que não seja necessário para o pensamento deste grupo sentir ódio por minorias, muitos dos incels acabam se associando também a grupos de extrema direita, com pensamentos anti semitas e racistas.
Agora que você, leitor, sabe exatamente o que é incel, é fácil perceber que este não é o caso do Coringa. Ele tem um relacionamento imaginário com uma vizinha, e é parte da sua crise perceber que esse relacionamento não ocorreu de verdade, mas Arthur não vira o Coringa por frustrações sexuais e amorosas. Portanto, ele não é incel.
Ok, respondemos a pergunta principal, a causa de manchetes e artigos preocupados desde o Festival de Veneza. Mas não parece certo acabar o texto ainda. Se o Joker não se revolta por ser incel, ele o faz porquê?
Para mim, é claro durante todo o filme que o que deixa Arthur em um estado perigoso é perceber o quão pouco ricos se importam com pessoas como ele, tomando o Estado e tirando dele direitos básicos, como saúde, segurança e assistência social.
O que deixa o Coringa pirado é a luta de classes.
Sério mesmo. Ele vira o símbolo de uma classe explorada que está disposta a usar da violência para acabar com os ricos. Mas o uso de jargão marxista não é completamente honesto da minha parte, já que o grupo que se inspira no Coringa não tem planos concretos para deter os meios de produção e conseguir conquistar o verdadeiro valor do seu trabalho.
Na verdade, é aí que o filme fica mal-feito para mim. Esse Joker odeia não a ordem e as supostas morais que regem uma sociedade hipócrita e caótica por natureza, como o Joker de Heath Ledger. Esse Coringa odeia os ricos, mata os ricos, odeia a forma como eles se infiltram no Estado e sucateiam o acesso à saúde – mesmo que ele reclame que ela não funciona de forma ideal, ele ia para as sessões de terapia, tentava fazê-las funcionar, tomava os remédios.
O grupo que se inspira nele protesta em eventos de gala onde ricos se juntam no meio de uma greve para assistir Tempos Modernos, de Chaplin, que trata do período da Revolução Industrial, onde o trabalhador se dissociou da parte artesanal do trabalho e passou a agir sem pensar em um trabalho mecânico, momento essencial para o capitalismo como o conhecemos. Esse grupo de coringas inclusive rivaliza diretamente representantes do Estado, linchando policiais em público.
Ainda assim, por mais que exista um momento de admiração do grupo pelo Coringa no final, em que ele coloca um sorriso em seu rosto com seu próprio sangue, esse líder não se considera político e nem tem planos para melhorar os problemas que uniram a multidão. Ninguém tem ideia de como consertar os erros dos ricos; como criar saúde pública e funcional que não deixe pessoas com transtornos psicológicos sem tratamento, ou como criar um grupo eficaz de assistência social que não largue uma criança com uma mãe instável.
Mas seria então o Coringa e seu grupo anarquistas? Eu honestamente não faço ideia, e acho que os roteiristas não pensaram muito nisso também. Então aconteceu o pior que podia acontecer com este filme, tematicamente falando: ele virou o meme “vivemos em uma sociedade”, em que coisas óbvias são ditas como grandes críticas sociais – uma situação especialmente triste quando lembramos que o filme tem uma atuação impecável do Joaquin Phoenix e uma direção linda do Todd Phillips. Mas é o tipo de coisa que acontece quando vivemos em uma sociedade.