‘Lugar Nenhum’ traça um excitante paralelo entre duas Londres

João Fagundes
5 Min de Leitura

A maioria dos leitores está acostumada com a adaptação vir de um livro para outro formato, sem saber que este “Lugar Nenhum” foi uma série de televisão que Neil Gaiman participou como roteirista, até então não tinha escrito nenhum romance. Só que, ao assistir sua ideia tomar outros rumos, decidiu colocar em uma versão mais digna e completa a sua ideia original, eis que surge seu primeiro livro como romancista. Publicado inicialmente em 1997 (um ano após a série ir ao ar), levou anos para que chegasse essa “Edição Preferida do Autor” que acrescenta aos fãs materiais exclusivos como um capítulo extra, uma cena cortada e uma introdução do autor falando de seu livro de estréia.

Esta obra é indispensável para quem já apreciou alguma das muitas obras de Gaiman, sejam atuais ou não, pois aqui foi o nascimento das inspirações que circundaram todas que vieram depois com “Deuses Americanos” e “O Oceano No Fim do Caminho“. Já fica perceptível desde os primeiros capítulos que o teor crítico sempre foi uma arma para Neil usar e abusar, assim como o cenário fantástico que foi criado abaixo da capital da Inglaterra, a secreta Londres de Baixo, local que abriga personagens muito peculiares. Nosso protagonista é uma pessoa comum, como você e eu, mas nem isso o impediu de conhecer esse local paralelo ao seu lar, onde possui um emprego, uma noiva e muitas insatisfações que ficaram pra trás sem a sua escolha.

Richard Mayhew é o típico homem inglês que, sem muita emoção em sua vida, faz o máximo pra ser reconhecido e respeitado por onde anda, o que não lhe garante uma felicidade, já que não consegue. Apelidado de Dick, nem mesmo os colegas o chamam assim. Sua vida ganha um verdadeiro motivo ao ajudar uma menina gravemente ferida, essa chamada de Door. Com esse nome excêntrico, a jovem precisa de Richard para escapar da cruel dupla engravatada, os senhores Vandemar e Croup, cujo o chefe – assim como suas intenções – é desconhecido. Ao ajudá-la, Richard se encontra em uma nova Londres, onde os Mercados funcionam a base de escambo (troca, sem moedas) e seus habitantes são mágicos. Só que nada disso é um problema maior que o fato dele ter se tornado “invisível” para os habitantes da sua Londres.

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Nessa cidade ele está sem casa, sem emprego e sozinho, o que lhe faz acompanhar Door e obedecer suas vontades, para que assim ela consiga devolver sua antiga vida. Com essa ideia, fica óbvio que não será fácil resgatar tudo que tinha, ainda mais com cada surpresa que aguarda nossos protagonistas, que logo terão a companhia de Hunter, uma mulher bastante característica, com força e atitude. Além dela, outro membro (esse de valor questionável) será o Marquês de Carabas, um carismático pensador sem muita credibilidade. Assim que formam esse grupo de desajustados, a história seguirá direta e sem faltar com a ideia principal, entender esse “país de não maravilhas”. É até possível sentir referências de “O Corvo” de Edgar Allan Poe.

Com fortes críticas ao modo de viver da sociedade, entendemos o tratamento que mendigos e moradores de rua recebem por apenas existir, recebendo descaso de todos isso quando lhe concedem atenção. Outro ponto forte está no nosso mundo é a cobrança que recebemos diariamente para sermos “homens de bem”, ou seja, obtendo sucesso em todos os âmbitos da vida, mas, com isso, abrindo mão do conhecimento próprio e valores fundamentais para a dignidade e saúde mental. Após ler fica claro que essa falha apontada no livro existe – e cresce – até hoje. Para uma história fantasiosa, ela é real demais, e como sempre Gaiman usa cada cantinho existente no mundo para que ganhe uma nova visão: mágica e ao mesmo tempo real, adulta.

Mesmo passando por inúmeras revisões, finalmente podemos entender que essa é uma versão definitiva, pois apresenta coerência e vem para agradar os fãs, pois casa perfeitamente com o conteúdo adicional. Até os personagens mais mornos no decorrer da trama terão mais sentido, já que buscam progredir. Gaiman tem em suas mãos um universo de ideias que podem fazer muitas continuações para essa história pitoresca e cheia de charme. Terminamos a obra desejando conhecer a Londres de Baixo, que é muito mais suja, mas é muito mais feliz.

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Mais um Otaku soteropolitano que faz cosplay no verão. Gamer nostálgico que respira música e que se sente parte do elenco das suas séries favoritas. Aprecia tanto a 7ª arte que faz questão de assistir um filme ruim até o fim. É um desenhista esforçado e um escritor frustrado por ser um leitor tão desnaturado. É graduando no curso de Direito e formado no de Computação Gráfica. “That’s all folks!"
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