Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2024, Anora é mais uma prova de que seu realizador Sean Baker não é um artista esperançoso. Projetos como Uma Amizade Improvável (2012), Tangerina (2015) e Projeto Florida (2019) que o cineasta se acerca das histórias de grupos marginalizados e oprimidos através do humor e do movimento.
Seu novo longa aproveita os melhores elementos do gênero de comédia romântica para investir o público em uma trama que, sob o caos das luzes neon e grandes xingamentos, desconstroem o conto de fadas do amor e também mostra uma grande representação das dinâmicas de poder do mundo real, de uma forma tragicômica e com certa crueldade.
O novo filme de Baker segue a personagem título, que prefere ser chamada de “Ani”. Ela é uma trabalhadora de sexo, não exatamente uma garota de programa ou prostituta, como não gosta de ser chamada. Trabalhando todas as noites num lugar chamado HQ (ou quartel-general), Ani é colocada para entreter o filho de um oligarca russo, pois sabe falar o idioma. Eventualmente ela se envolve romanticamente com ele, mas tudo isso vai por água abaixo quando os pais do garoto descobrem e querem pôr fim ao relacionamento. Isso leva Ani e os capangas dos pais do garoto a uma busca implacável por ele em toda Nova York.
Apesar de o marketing e até seu trailer vender uma história de amor que lembra Uma Linda Mulher, Anora está longe de ser isso. O que parece um conto de fadas moderno, então se transforma na tempestade de uma realidade opressora, desigual e que deixa claro o recado: quem tem mais poder, vence e que para esses as consequências não existe. Em contrapartida, o filme expõe um pouco desse trabalho que sofre grande preconceito na sociedade. Uma decisão interessante da direção foi mostrar como trabalhar com sexo é apenas um trabalho como qualquer outro. Vivida pela cativante Mikey Madison, Ani, encontra clientes e, no meio tempo, conversa com amigas, faz piadas, até “marmita” no meio da noite, como qualquer trabalho considerado “normal”.
As escolhas criativas do roteiro, direção e a interpretação de Mickey Madison tornam Anora uma protagonista completa. O misto de ingenuidade e esperteza que nos apresenta: temos aqui uma personagem cuja fragilidade continua visível mesmo em seus momentos mais impetuosos. Com uma hipnótica e intensa entrega, Madison mescla perfeitamente entre a sensualidade e o meigo que sua personagem tem. Com certeza merece o seu reconhecimento nas premiações.
Anora explora bem o retrato de uma geração (dentro de um recorte, é claro) que se divide entre um certo ar de desdém e uma imensa vulnerabilidade. O fato de como inconsequente são as tomadas de decisões para com um relacionamento pareia com o sonho e o choque de realidade se colide de forma insana.
Ani, habituada a vida cercada de exploração sexual, aprendeu exatamente o que precisa fazer e como se comportar para evitar ciladas e tirar alguma vantagem das situações, porém fica maravilhada e vulnerável com a proposta inconsequente de Ivan(ou Vanya) e quando percebe o mundo em que se meteu, mesmo não levando desaforo para casa, ela percebe que não há como lutar nessa queda de braço onde quem tem poder pode tudo e que pra eles as consequências são nulas. É nesse ponto que Baker e seu texto é habilidoso em tecer uma crítica incrível com a disparidade de classes sociais e subverte o “felizes para sempre” que mais adiante em acontecimentos que desconcertam tanto Ani quanto o espectador.
Enquanto Ani é apenas reduzida a uma prostituta, como todos outros personagens a chamam, Vanya está em seu próprio mundo. Ele não tem noção das consequências. Tudo isso cai na resolução do filme, quando o casamento dos dois é anulado e ele volta para a Rússia. Mas e Ani? Bom, pra ela as consequências existem
Contudo, mesmo com esse enloquência trágica, tudo isso a partir do segundo ato tem uma dose altíssima de comicidade, a partir do momento que os capangas entram em ação para resolver a situação gerada pelo casamento inesperado. O caos e as trapalhadas deles geram risos que soam tragicômicos para a plateia; você rir, mas sabe que há uma merda maior a acontecer com Ani. A escalada do exagero também tem função na exposição do ridículo das situações, que o longa, no fim, amarra com um desfecho desconfortável, comovente e autêntico.
Anora é de longe tudo, menos uma história de amor. Ele é uma desconstrução tragicômica que nos deixa com um gosto agridoce na boca após a resolução totalmente real, mas igualmente cruel.