Aves de Rapina | Margot Robbie sabe quem é seu público e entrega um filme perfeito para garotas e gays

Catarina Lopes
11 Min de Leitura
Divulgação/IMDb

Ainda é meio chocante ver um filme de super-herói que apela para o gosto de um outro tipo de fã, com uma história que não pensa em visuais e piadas só para o grupo de homens de sempre, com mulheres e famílias acoplados numa massa desforme como público. Essa tentativa de apelo geral com o mesmo grupo foco é uma das razões para o gênero estar saturado, com poucos cineastas ousando trazer um respiro de criatividade.

Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa passa longe disso, já que sabe exatamente para quem o filme foi feito: garotas, gays e a interseção entre os dois. Seu design de produção, trilha sonora, sequências de ação e humor são feitos sob medida para o grupo, muitas vezes deixado de lado em seu potencial como público e, consequentemente, fonte de bilheteria.

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A diferença começa na própria Harley Quinn (Margot Robbie) que, como uma boa jovem em crise, passa por uma mudança de visual como forma de tomar controle sobre sua vida – e inclui, para maior autenticidade, cortar uma franja sozinha em casa. A direção, comandada por Cathy Yan, não só evita os ângulos ginecológicos que a personagem foi filmada em Esquadrão Suicida, mas trata ela com compreensão nas sequências de luta, valorizando roupas mais confortáveis e funcionais, chegando até a fazer a personagem lutar de meia em vários momentos – claro que as meias são de lantejoulas coloridas.

A Canário Negro/Dinah Lance (Jurnee Smollett-Bell) é a segunda personagem com maior desenvolvimento, e uma adição muito boa para o cinema da DC. Com seu código moral próprio, poder peculiar e estilo de humor definido, é completamente compreensível como ela está pronta para se unir com mulheres muito diferentes dela.

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Renee Montoya (Rosie Perez) é outra personagem de destaque do grupo, e o roteiro usa ela para mostrar outras experiências que levam mulheres tão diferentes a se identificarem – o desejo por emancipação. Montoya é uma detetive talentosa, mas o crédito por seu trabalho é constantemente tirado dela por seus colegas, que não a levam a sério e a perturbam por ser uma mulher de meia idade.

Montoya também é uma das únicas personagens abertamente não-heterossexuais do cânone de filmes de super-heróis, e seu relacionamento com sua ex é tratado com tanta decência e sensibilidade que deveria servir de exemplo. Aliás, é deixado claro que a Harley também não é hétero. Esse tipo de representação é um alívio – basta olhar o estúdio ao lado, que só teve um personagem gay após 11 anos de universo, e era um cameo sem nome de um dos diretores. A naturalidade que isso é tratado no filme também é uma surpresa boa; afinal, pessoas gays existem, por mais que blockbusters às vezes esqueçam.

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A Caçadora/Helena Bertinelli (Mary Elizabeth Winstead) tem menos tempo de tela e menos desenvolvimento, mas entrega um visual incrível e uma performance física forte nas cenas de ação, além de ter um humor que interage bem com o resto do elenco, especialmente com Harley e Dinah.

Helena também foi foco de uma polêmica no Twitter, em que um usuário postou uma imagem de Winstead em um ensaio com um vestido justo e a atriz como Huntress, usando um top tático, cabelo curto bagunçado e maquiagem forte nos olhos, se queixando que “é como se tivessem falado para a atriz que ela não pode ser sexy”.

Muitas questionaram, confusas, em que mundo a Caçadora não é sexy, mas o caso serve como exemplo de quando o male gaze vira regra na produção audiovisual. A Caçadora é, sim, sexy, mas não da forma que mulheres são normalmente enquadradas como sexys – quando o espectador é masculino, o que vinha sendo a regra. Aqui, a personagem parece forte e durona, com uma paleta de cores que lembra a de personagens como Jade, de Brilhante Victoria, e Sam Manson, de Danny Phantom, levemente codificadas como queer em programas que mulheres gays cresceram assistindo.

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A Cassandra Cain (Ella Jay Basco) ajuda a quebrar o ritmo exaustivo tradicional de filme de equipe, agindo como uma versão mais interessante do clássico McGuffin que une a trupe: todas as personagens acabam sentindo um dever de proteger Cassandra por ela ser uma jovem carismática. Ela também ajuda na evolução de Harley, já que Cain é a primeira pessoa depois do Coringa que a Arlequina cria laços. Quando Quinn passa a se preocupar com ela de forma genuína é quando ela para de seguir o exemplo emocional pouco saudável dos homens em sua vida.

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O Máscara Negra/Roman Sionis (Ewan McGregor) é o melhor vilão do DCEU até agora, aterrorizante sem ser clichê, fazendo uma caricatura de comportamentos típicos de homens com poder demais e a maturidade emocional de uma criança mimada, com seu desejo de possuir tudo que ele gosta, de pessoas a culturas. Apesar de ser foco de uma das melhores piadas do filme, ele também tem uma das cenas mais pesadas.

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Sionis é codificado como queer, o que é normal em vilões de blockbuster, mas não é tão incômodo em um filme com tanta representação positiva para pessoas gays. Sua dinâmica com Zsasz (Chris Messina), o típico lacaio de vilão, também é interessante – aliás, Zsasz como um todo é um personagem curioso. O casal servem como exemplo de como homens não héteros podem ser reprodutores ferrenhos de machismo, vendo mulheres como itens para mera apreciação enquanto mostram respeito para seus iguais, outros homens, com uma fraternidade que nunca é oferecida para as garotas, nem quando elas ainda são vistas como queridas.

Passando para um tópico mais leve, os visuais do filme são o sonho de seu público alvo. Como Coringa apelou para o desejo cult de ver uma fotografia esverdeada em uma Gotham cheia de lixo, Aves de Rapina é brilhante, colorido, cheio de texturas e formas, cada segundo um presente de prazer estético puro. Os setpieces são inesquecíveis, como o apartamento de Harley, a boate de Roman e a atração de parque de diversão onde ocorre o clímax do filme.

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Também é preciso parar um momento para elogiar a Margot Robbie, que se consolida como a Harley Quinn dos cinemas ao dar mais profundidade para uma personagem que parece impossível para o cinema live action, com seu sotaque e entonação afetados e suas acrobacias que tornam uma mulher de 55kg páreo para uma sala cheia de lutadores. Robbie também produziu o filme por meio da Luckychap Entertainment, fazendo da empresa um nome grande na indústria para produtos feministas engraçados e bem-feitos.

Ela casa o lado mais antigo e até problemático da indústria ao trabalhar e respeitar grandes nomes, assim angariando poder e status para abrir mais espaço para diversidade criativa – a Luckychap, em parceria com a empresa da roteirista do próprio Aves de Rapina (Christina Hodson), lançou um programa de mentoria para mulheres escreverem roteiros de filmes de ação. Robbie também é constantemente elogiada por todos que trabalharam com ela, contando que ela conseguia dominar qualquer habilidade para o filme em questão de dias.

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Outro ponto alto do filme é o humor, com sacadas espertas rápidas e fórmulas que funcionam. A montagem também merece parabéns, já que o filme todo segue a lógica e progressão de espaço-tempo da Harley, que não é a pessoa mais certa com esse tipo de coisa. Mas esse aspecto só torna o filme mais interessante, assim como a narração de Quinn, que é um dos poucos exemplos de narração bem feita, já que absolutamente tudo no filme segue a visão de mundo da Harley.

Se você não é um dos únicos dois gêneros tradicionais que existem (mulheres e gays) e ainda assim gostou do filme, você é como as mulheres, gays e interseção que curtem filmes de super heróis há décadas mesmo sem serem o público-alvo. É possível e saudável conseguir ter conexão com outros pontos de vista, e é bom que o grupo dominante comece a ter essa experiência.

Aves de Rapina não está tentando atrair novos públicos tanto quanto está valorizando um grupo que sempre consumiu filmes de super-herói, mas poucos prestavam atenção e produziam para eles.

Não é tanto sobre reduzir tudo à militância, e sim sobre o simples prazer de sentir que algo foi feito pensando em você por pessoas parecidas com você. Ter diversidade na produção audiovisual é só ganhos – traz novidade para gêneros saturados, reconhecimento para grupos ignorados e dinheiro para os estúdios.

 

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Jornalista em formação e fã de cultura pop por natureza
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