O entusiasmo que Rian Johnson sente fazendo Entre Facas e Segredos é absolutamente contagiante desde o primeiro acorde dramático de violino. O suspense estilo Agatha Christie conta com um elenco estelar, cenários cheios de detalhes e diálogos precisos, mas a característica que mais se destaca é a animação absurda que o diretor e roteirista parece sentir em desenvolver essa ideia, esse casamento entre gênero clássico e comentário social de um homem acostumado com a linguagem política da internet, especialmente após a reação estúpida de muitos que não gostaram de The Last Jedi.
O filme começa, como é necessário nesse tipo de história, com uma morte dramática e misteriosa. Vemos uma caneca típica de loja de presentes escrito “Minha Casa, Minhas Regras, Meu Café” sendo preparada e levada para o escritório de, segundo a decoração, um senhor muito rico e excêntrico, que está morto demais para apreciar a bebida.
Então conhecemos nossa protagonista, Marta (Ana de Armas), a enfermeira latina que cuidava do senhor em questão, o escritor de mistérios de assassinato Harlam Thrombey (Christopher Plummer). Vamos sendo apresentados aos Thrombey, que são uma coleção de clichês do fim dos anos 2010: a estudante de esquerda estilosa, maconheira e marxista, Meg (Katherine Langford), neta de Harlam; a esposa mais bem sucedida que seu marido “beta”, Linda Drysdale (Jamie Lee Curtis), filha de Harlam; seu marido fracassado, Richard Drysdale (Don Johnson); e seu filho playboy problemático, Ransom Drysdale (Chris Evans).
Outros clichês estão batendo ponto, como a empreendedora influencer de lifestyle que é viúva de um dos filhos de Harlam e mãe de Meg, Joni (uma Toni Colette genial de tão engraçada e precisa); o filho mais novo fracassado de Harlam que vive à sombra da propriedade do pai, Walt Thrombey (Michael Shannon); e seu filho neonazista ativo online, Jacob Thrombey (Jaeden Martell, que mantém o corte de cuia de It).
O clã está reunido na propriedade ridiculamente dramática de Harlam, que é comparada à um tabuleiro de Detetive por um dos detetives, para honrar a memória dele e ler sua herança. Esse barril de pólvora de tensões cria uma dinâmica hilária entre os personagens, muito bem filmada por Johnson.
Ana é imensamente carismática e nos faz gostar de Marta na hora, especialmente rodeada de eleitores de Trump que ficam arrotando grosserias à sua origem latina e erram seu país de origem toda vez que o mencionam. Chris Evans é o outro ator que consegue evoluir um pouco além de seu clichê, e dá pra ver o prazer dele ao ter uma folga de ser um símbolo de justiça e verdade nas telas por quase uma década. Ele volta para as suas origens de meninão americano descendente de rednecks, e está completamente confortável em ironizar o arquétipo.
Os outros personagens não têm tempo de ir muito além dos clichês, mas os atores entregam linhas icônicas, como Jamie se queixando de faculdades de análise de poesia marxista feminista pós moderna, ou quase tudo que Benoit Blanc (Daniel Craig) fala em seu sotaque arrastado esquisito, meio francês e meio sulista, um detetive antiquado transportado diretamente para questões políticas de 2019, tweed e cachimbo inclusos.
Mas a verdadeira estrela é Rian, como roteirista e diretor: o roteiro é fechadinho, delicioso de olhar para trás depois do filme, e um exemplo perfeito de como setup e payoff são bem utilizados, assim como foreshadowing. Vários termos técnicos para dizer que a história é toda pensada para que você tenha todas peças para descobrir os mistérios, que são um pouco diferentes do normal, mas o roteiro te distrai de forma natural com o avanço dele para que você não tenha tempo de fazer isso.
E a direção é incrível. Ele sabe como usar da linguagem cinematográfica perfeitamente para simbolizar todas as mudanças de dinâmica entre os personagens sem recorrer à frases óbvias ditas apenas para nós, o público.
É uma experiência cinematográfica completa, divertida e com ritmo sem sacrificar a produção de arte, diálogos, construção da história e atuações. Mostra que tem sim como fazer arte em um parque de diversões, por assim dizer.
Entre Facas e Segredos é um filme de Natal, suspense e humor sem intenção de construir franquias, que faz comentários sociais sem intenção de ser doutrinador – já que sabe que concorda com seu público alvo – e que se diverte sem pretensão de ser uma grande obra de arte. E, assim com esse jeitão de quem não quer nada, se consagra como um dos melhores filmes de 2019.