Quando começa outro filme “baseado em fatos reais”, se passando em uma universidade e estrelando Felicity Jones (Rogue One), é quase impossível não lembrar de A Teoria de Tudo, filme sobre a vida de Stephen Hawking. A comparação fica ainda pior quando o marido gentil de Jones, interpretado por Armie Hammer (Me Chame pelo Seu Nome), é diagnosticado com uma doença grave. O medo que o filme se transforme em um Oscar-bait sem alma é real e palpável.
Mas Suprema logo surpreende. A história agora é de Ruth Bader Ginsburg, não de um homem e sua esposa que o dá apoio incondicional. Além de mãe e esposa, Ruth é uma das primeiras alunas frequentando a prestigiosa Escola de Direito de Harvard, e seu marido é quem a apoia – sua primeira aparição, alimentando a filha do casal e estudando, ao mesmo tempo que Ruth se prepara para um jantar importante, é um refresco aos olhos, revertendo o típico clichê encontrado exaustivamente no cinema.
Ruth é jovem numa época em que mulheres haviam conquistado o voto, e os homens no poder acreditavam que não existia mais nenhuma desigualdade a ser resolvida. Só que a brilhante estudante acha várias brechas na lei americana que permitem que a Justiça discrimine homens e mulheres, reforçando estereótipos tóxicos de gênero.
Nisso que o filme pode alienar parte da audiência – pensado para um público americano, já acostumado com a forma que sua Justiça funciona, a trama não para um segundo para explicar que o direito dos Estados Unidos se baseia em precedentes, decisões tomadas por outros juízes. Por isso, a luta da protagonista para vencer um caso sobre impostos pode parecer desimportante – o que é preocupante, já que este caso é parte essencial do enredo.
Além disso, todos os personagens do filme estão envolvidos com o Direito, e todas as suas conversas envolvem a descrição de casos, exemplificando como as leis são formas do Estado de aplicar suas crenças nos cidadãos. É uma reflexão interessante, mas o filme perde a chance de humanizar seus personagens, que parecem sempre estar saindo de uma aula sobre a história do direito americano, mesmo nas situações mais pessoais.
A direção de Mimi Leder (Impacto Profundo) também não se destaca – seus últimos sucessos no cinema são da década de 90, e a diretora trás o estilo da época, tomando poucos riscos que poderiam compensar a frieza dos diálogos. Mesmo assim, é importante ver uma mulher assumir o papel da direção em um filme sobre uma mulher, mesmo que o roteiro seja de um homem, o novato Daniel Stiepleman.
Apesar de seus problemas, o filme dá uma guinada positiva na metade final, quando a filha de Ruth vira uma adolescente feminista e revolucionária, típica dos anos 70. Cailee Spaeny (Círculo de Fogo: A Revolta) trás vulnerabilidade e força, e consegue atuar no mesmo nível que Felicity Jones. Seus embates ideológicos – a personagem de Jones é de uma geração mais acomodada que a de Spaeny – são a parte mais interessante do filme, e lembram a dinâmica de Lady Bird, só que com um viés político ao invés de pessoal.
Os personagens masculinos também são escritos com autocrítica por Stiepleman. É fácil cair no estereótipo de homens machistas maus e homens pró-feministas bons, mas ele mostra que existe sim uma área cinza. Há os dois clichês citados, mas também personagens com boas intenções que teimam em repetir atitudes tóxicas, não confiando na capacidade de Ruth como advogada.
A direção de arte do filme também merece apreciação. Além de entregarem figurinos históricos lindíssimos, ajudam a contar a história. Os homens pouco mudam com o passar das décadas, mas as mudanças entre as gerações de mulheres ao longo dos anos é gritante, reforçando a tese do filme.
Suprema é um filme competente, e sua história é atual e importante, lembrando que os direitos civis só vem com luta, não importa em que âmbito. Apesar disso, se perde em divagações sobre o sistema judiciário americano, e falha em dar aos atores uma forma de se conectar com o público.